Igreja sem Partido: Vedação à Atuação Político-Partidária
Igreja sem Partido, Partido sem Igreja: Pela Vedação da Atuação Partidária das Instituições Religiosas
Fé, política e o risco da captura
No Brasil, as instituições religiosas gozam de um privilégio constitucional raro: a imunidade tributária (quanto a impostos) prevista no artigo 150 da Constituição Federal de 1988. Igrejas e templos não pagam impostos porque se entende que seu papel é espiritual, comunitário e voltado ao cuidado das pessoas. No entanto, essa imunidade se torna um problema quando essas instituições, em vez de se manterem no campo da fé, invadem a arena político-partidária. Quando púlpitos viram palanques, pastores viram candidatos ou cabos eleitorais e templos se transformam em comitês de campanha, a lógica da imunidade deixa de se sustentar.
A experiência brasileira recente mostra que essa fronteira entre fé e política não só foi cruzada, como tem sido reiteradamente violada. Não se trata apenas de indivíduos religiosos que participam da vida pública - algo legítimo em uma democracia -, mas de instituições religiosas que se organizam como partidos ou se fundem a eles, condicionando escolhas, definindo candidaturas e direcionando votos dos fiéis. A pergunta é inevitável: até quando aceitaremos a promiscuidade entre religião e política como se fosse algo natural?
1. A imunidade tributária e seu fundamento ético
A imunidade tributária (quanto a impostos) das igrejas foi concebida como forma de proteger a liberdade religiosa, um valor fundamental em qualquer democracia pluralista. O Estado laico não deve taxar ou controlar a fé. Mas a contrapartida implícita é clara: em troca da imunidade, as instituições religiosas, as lideranças que nelas atuam, seus representantes, devem se manter fora da disputa política, garantindo que sua missão espiritual não se converta em instrumento de poder.
Quando uma igreja se comporta como partido, porém, a lógica constitucional se inverte. Ela permanece imune a impostos, mas passa a operar como máquina política sem transparência, sem regras de financiamento e sem os limites impostos às legendas partidárias. Isso não é liberdade religiosa: é distorção democrática e privilégio indevido.
O resultado é perverso: cria-se uma desigualdade no próprio jogo político, em que partidos precisam obedecer à legislação eleitoral e prestar contas, enquanto “igrejas-partidos” atuam blindadas, financiadas indiretamente pela condição de imunidade quanto a impostos. Essa assimetria fragiliza o Estado de Direito e ameaça a soberania popular.
2. Igreja como partido, partido como igreja
Os exemplos concretos são numerosos e conhecidos. Bancadas inteiras se apresentam como representantes de determinadas denominações religiosas, e não de todo o povo. Pastores orientam votos de fiéis, transformando a devoção em moeda política. Em alguns casos, lideranças religiosas se valem de templos e de mídias confessionais para favorecer candidaturas, consolidando força não pela qualidade de propostas, mas pela instrumentalização da fé.
Essa prática compromete não apenas a democracia, mas a própria espiritualidade. A mensagem de Jesus de Nazaré - que lavou os pés de seus discípulos - é deturpada para legitimar projetos de poder. O Evangelho, que deveria ser anúncio da liberdade e da justiça, torna-se instrumento de barganha e chantagem política.
Perguntemo-nos: que Igreja é essa que mede sua relevância pelo número de cadeiras no Congresso? Que fé é essa que transforma a Palavra em palanque e a salvação em slogan eleitoral?
3. A experiência internacional e a lição da Emenda Johnson
Não é a primeira vez que sociedades enfrentam esse dilema. Nos Estados Unidos, em 1954, o Congresso aprovou a chamada Emenda Johnson, que proíbe organizações religiosas e outras entidades imunes a impostos de participarem em campanhas políticas, endossando ou se opondo a candidatos. O objetivo era claro: preservar a separação entre religião e política e impedir que a fé fosse instrumentalizada para manipular a democracia.
A lógica da emenda é simples e poderosa: se uma instituição deseja atuar politicamente, tem todo o direito, mas deve abrir mão da imunidade (quanto a impostos) e se submeter às mesmas regras dos partidos e organizações políticas. Não pode ser, ao mesmo tempo, igreja e partido, púlpito e comitê.
O Brasil poderia - e deveria - adotar uma norma semelhante. Não se trata de restringir a liberdade religiosa, mas de protegê-la. Quando tudo vira política, até a fé perde sua autenticidade.
4. O risco da mercantilização da fé
Sem um marco claro, igrejas que atuam como partidos podem valer-se da condição de imunidade quanto a impostos para financiar campanhas, direcionar votos e negociar favores com o poder público. A fé vira mercadoria; a política, moeda de troca. O resultado é uma dupla degradação: espiritual e democrática.
Importa frisar: não se critica aqui esta ou aquela denominação, mas se defende o princípio constitucional da laicidade. O Estado não deve ter religião, e a religião não deve transformar-se em Estado. Quando essa fronteira é rompida, quem perde é a sociedade como um todo.
Daí a necessidade de regras objetivas: vedar a atuação político-partidária institucional de igrejas, coibir o uso de mídias religiosas para promover candidaturas, impedir que material de campanha traga títulos religiosos (“Pastor”, “Bispo”) como capital eleitoral e, em caso de desobediência, aplicar sanções proporcionais.
Um convite à reflexão
A hora é de coragem. Precisamos, como sociedade, discutir um marco regulatório que defina com nitidez a esfera de ação das igrejas: plena liberdade para pregar, servir e celebrar; vedação explícita à atuação político-partidária institucional, com sanções claras e efetivas. Quem desejar disputar poder deve fazê-lo sem privilégios decorrentes da imunidade de impostos e segundo as mesmas regras do jogo democrático.
Não podemos continuar aceitando que instituições blindadas pela fé se transformem em partidos ocultos. A laicidade do Estado não é opcional: é condição de possibilidade tanto da democracia quanto da autenticidade da fé.
O Brasil precisa decidir: queremos um país onde a fé seja fonte de vida e esperança — ou um terreno em que a religião é usada como ferramenta de poder? A resposta a essa pergunta definirá o futuro da democracia e da própria sociedade.
Por Harlei Noro | Pensamento crítico com apoio GPT