João Batista foi domesticado pelas Festa Juninas?
Há vozes que não cabem em bandeirinhas coloridas, nem em arraiás domesticados pela tradição. João Batista é uma dessas vozes. O homem do deserto, de vestes rústicas e palavra incendiária, parece hoje encaixotado no folclore, amansado nas festas juninas. Mas seria isso justo com aquele que pagou com a vida pela coerência profética? A provocação se impõe: estamos celebrando João ou apenas encenando sua memória, esvaziada de sua força originária?
A Natividade de João, celebrada em 24 de junho, é uma das poucas festas de santos que remonta ao nascimento e não à morte. Sua vida anuncia, com força e ruptura, a vinda do Cordeiro. Contudo, no imaginário coletivo brasileiro, ele foi sendo reduzido a milho verde, danças de salão improvisado, concursos de caipira e canções animadas ao som de sanfona. A fé deu lugar à tradição. A profecia cedeu à festividade. A religiosidade popular que, em sua origem, buscava catequizar e evangelizar por meio da cultura, parece hoje mais comprometida com o entretenimento que com o Evangelho.
1. Cultura, comércio e o risco da anestesia
A festa junina se popularizou no Brasil como expressão cultural. Importada pelos jesuítas, misturou ritos cristãos e práticas agrárias, danças populares e simbologias devocionais. Com o tempo, ganhou peso comercial e tornou-se parte do calendário de eventos de escolas, paróquias, empresas e comunidades. Tornou-se vitrine de regionalismo e nostalgia.
Hoje, o que se celebra, muitas vezes, é o evento em si: o show, a quadrilha, o figurino, o paladar da roça e as imagens idealizadas de um Brasil rural e festivo. Há beleza e memória nisso, sem dúvida. Mas há também o risco da anestesia espiritual. Quando a festa vira fim em si mesma, o santo vira adereço. João é lembrado, mas não escutado. Seu grito por conversão vira trilha de brincadeiras. Seu chamado à justiça é abafado pelo volume da quadrilha. O profeta da austeridade é celebrado entre barracas de fartura, em um país faminto de verdade.
2. O grito abafado da profecia
João não veio dançar com os reis. Sua missão foi desinstalar: acusar o adultério de Herodes, denunciar a hipocrisia farisaica, chamar ao arrependimento até o mais justo dos homens. Seu batismo era ruptura. Sua palavra, martelo contra conveniências. Seu destino, a prisão e a decapitação.
Ao ser lembrado sem sua missão, corre-se o risco de diluir a força de sua mensagem. O profeta da radicalidade é transformado em símbolo de festa rural. A liturgia vira fundo musical para quadrilhas encenadas. E a denúncia? Essa perde o eco. Reduzir João é como apagar a lâmpada no meio da noite — sem sua luz, ficamos à mercê da escuridão das repetições vazias.
A crítica aqui não é contra a cultura popular, mas contra a perda de sentido. A fé e a cultura não são inimigas — desde que a cultura não roube da fé sua centralidade. A festa deve ser caminho de memória e compromisso, não de fuga da realidade. É preciso redescobrir João Batista como voz que clama, não como eco que agrada.
3. João: figura estratégica para a reiniciação cristã
Em tempos de desencanto, João é farol. Sua radicalidade é resposta à superficialidade. Sua voz no deserto ressoa hoje nas periferias espirituais e sociais, onde a verdade custa caro e a coerência tem preço. Ele não convida a voltar ao passado, mas a recomeçar. Sua pregação – “Convertei-vos!” – não é moralismo, mas libertação.
João lembra que o Evangelho começa com a escuta da verdade sobre nós mesmos. E que a festa verdadeira acontece quando o coração se volta ao Cordeiro. Ele aponta, não retém. Grita, mas depois silencia. E nesse silenciar, nos convoca a ser continuadores. Em uma sociedade em que tudo parece negociável, João é o não negociável. Em uma Igreja que busca caminhos novos, João é o retorno às fontes.
Sua vida e morte, marcadas pela coragem, autenticidade e entrega total, são convite à reiniciação cristã. Àqueles que perderam o sabor da fé, João reapresenta o Evangelho como novidade urgente. Àqueles que confundem tradição com comodismo, João oferece deserto. Àqueles que se esqueceram da verdade, João oferece o risco da Palavra.
4. Recolocar João Batista no centro: urgente e necessário
Não se trata de acabar com as festas juninas. Trata-se de devolver-lhes densidade. É preciso resgatar a mística. Trazer a voz de João para os púlpitos, as catequeses, os grupos de jovens, os podcasts e as redes. Ensinar que antes do milho e da quadrilha, há um chamado. Antes da fogueira, há um batismo de fogo. Antes da dança, há um deserto.
A Igreja, e toda a sociedade que dela se nutre, ganha quando o grito de João é escutado. Perde, quando sua voz é decorativa. João é sinal de contradição — e não decoração. Um profeta não serve para embelezar festas, mas para iluminar decisões. A festa deve anunciar a Palavra que transforma, e não esconder a Palavra atrás da música. Valorizar João é deixar que sua voz incomode.
Recolocar João no centro é reconhecer que ele nos fala ainda hoje. Sua denúncia continua atual: contra a corrupção, contra o escândalo, contra os pactos escusos entre poder e vaidade. Sua coragem ainda é necessária: para quem deseja viver a fé sem maquiagens. Sua fidelidade é modelo: de quem não recuou nem diante da morte.
5. Uma provocação final
Pode um profeta ser domesticado por sua festa? Pode um mártir virar mascote de evento? João Batista talvez gritasse do céu: “Preparai o caminho, e não apenas o arraial!” Que sua memória desperte consciências. Que sua voz clame mais alto que o forró. Que sua missão inspire menos repetição e mais transformação.
Talvez, então, possamos celebrar a festa junina não como uma nostalgia vazia, mas como um tempo de reencontro com a coragem, a verdade e a esperança — marcas eternas de quem viveu para preparar o Caminho.
Por Harlei Noro | Pensamento crítico com apoio GPT